sábado, 27 de fevereiro de 2021

Diário de bordo

Aqueles dias que porventura poderiam ter sido infindáveis, eram preenchidos pelo trabalho e pela incerteza dos acontecimentos no fim de um mundo agreste e de um país inóspito, habituado à guerra, às invasões e aos desvarios do fundamentalismo islâmico. A capital Cabul está a 1800m de altitude, com um clima que nem o diabo quereria para si. 

 A base militar de Kaia encontra-se no perímetro do aeroporto da cidade, sendo um centro nevrálgico na distribuição e rotação dos vários contingentes militares, de ONGs, de Instituições mundiais e de todas as vias de comunicação do Afeganistão com o mundo. Era uma verdadeira torre de babel, multicultural e de uma heterogeneidade tão díspar como as forças internacionais que constituíam a ISAF (International Security Assistance Force), a missão da NATO para o país. Só em Kaia, estavam contingentes militares de 32 países, fora as outras entidades civis e organizações internacionais! 

Os dias eram passados no hospital, incluindo sábados e domingos, com a alvorada por volta das sete da manhã. Duche, camuflado ligeiro, e refeição no Supreme, onde um bando de alegres paquistaneses e indianos nos serviam um pequeno-almoço bem nutrido. 

De caminho para o hospital passávamos pelo quartel-general, mas as bandeiras já não estavam a meia haste. Nos últimos três meses tinha sido esse o tributo diário em memória dos que perdiam a vida na frente, mas a partir daquele instante o comando tinha decidido não o fazer, pois era um factor que afectava a moral das tropas. Todos os dias os nossos eram abatidos pelos outros, nem querendo eu imaginar quantos deles  também sucumbiram. Uma atitude de simbolismo transformava-se numa visão de desânimo e desalento, que nos deprimia e punha a reflectir na guerra, nos mortos, nos nossos, nos porquês, nos valores, no significado da existência. Como se isso ali fosse importante.. 

O calor era abrasador já por aquela hora, e o ar condicionado do hospital refrescava-nos as ideias. A visita médica das 8 da manhã era feita com as equipas cirúrgicas francesas, alemãs e búlgaras, juntamente com o Dr.Dupin, um internista francês mais velho do qual fiquei muito amigo e com o qual discutia os doentes que tínhamos internado na véspera. Uma enfermaria de militares, uma de afegãos e outra de mulheres, davam apoio à urgência, ao bloco e aos cuidados intensivos. Tínhamos sempre tudo cheio e fazíamos verdadeiros malabarismos para encaixar os doentes nas camas, sabendo que os militares da ISAF tinham estadias curtas e eram rapidamente repatriados, enquanto os afegãos tardavam em ter alta, pois ir em convalescença para uma qualquer aldeia sem o mínimo de condições podia de facto comprometer toda e qualquer recuperação. Nisto tudo, as nossas enfermeiras degladiavam-se com o desafio cultural de conseguir que os afegãos aceitassem ser tratados por elas, enquanto os nossos intérpretes se interrogavam em como traduzir o vernáculo português. Não o percebiam, mas faziam um sorrisso cúmplice compreendendo a intenção e a intensidade das palavras.

 Ao fim da manhã a equipa portuguesa tinha o briefing semanal com o Major Machado, onde nos dava conta do boletim meteorológico, o código da semana (naquela semana era “dustbin”), quantos ataques tinha havido em Cabul, quantos rockets, quais as ameaças, algumas fotografias de insurgentes procurados, quais os veículos suspeitos, e outras informações que não acrescentavam muita tranquilidade ou paz interior, mas que era importante saber. 

Víamos um slide dum Toyota branco, com matrícula de Jalalabad AF-23476, quando ouvimos uma chamada geral de todo o hospital para a urgência, pois íamos receber vários pacientes de Kandahar que viriam de helicóptero. Foram organizadas as equipas de evacuação Med 1, 2 e 3 para transportar os feridos das aeronaves até ao hospital e o resto do pessoal estaria na urgência para os receber. 

Tinha havido um confronto entre Americanos e talibãs, numa aldeia dos arredores de Kandahar, ao sul do país. Enquanto o horror durou e as balas silvaram de uma a outra parte, a população refugiou-se como podia, nas casas e por detrás de barricadas improvisadas. Quando o fogo acalmou, houve um miúdo de 13 anos que começou a correr assustado para casa, tendo sido alvo de três tiros de uma das facções que o atingiram no abdómen e na anca. Chamavam-lhe “dano colateral”, uma denominação que branqueava muitos sofrimentos nesta filha da putice de guerra. Levaram-no para o hospital local, onde chegou a ser operado, mas aquilo tudo infectou, com abcessos no abdómen e inclusivé babando pus de uma articulação da anca. Tiveram de o evacuar, pois nós tínhamos ortopedistas e cirurgiões que o poderiam salvar. A ironia do destino, é que vinha agarrado a uma bola de futebol oferecida, mal sabendo ele que provavelmente nunca mais iria poder jogar... 

 Chegaram outros soldados feridos, e pela cara não apenas feridos de bala, mas feridos também no coração, na alma, no olhar vazio de quem perde a inocência desde que aqui está. Uns directos para o bloco, e outros para os intensivos aguardando hora para a cirurgia. 

 O pobre Lalai Tor vinha acompanhado pelo pai que aparentava uns 60 anos, a face sulcada de rugas profundas da dor de antes e de agora, uma rude barba gris, e um peso de preocupação que lhe arqueava as costas. Era um pobre coitado que acompanhava o filho dia e noite, abdicando de trabalhar para seguir a par e passo aquele infortúnio familiar. Esta dedicação tinha repercussões graves na família, pois se o pai não trabalhasse não havia sustento e todos os outros filhos passariam fome, uma vez que nesta sociedade a mãe não pode trabalhar por ser mulher, ficando com a obrigação de ficar em casa a cuidar da família e da lide diária. 

Na radiografia podia ver-se a bala incrustada no ilíaco, no corpo os efeitos de toda aquela tragédia, e no olhar que transparecia medo, um miúdo assustado implorando ajuda em silêncio. Com a mobilização, as dores eram provavelmente insuportáveis e o frágil Lalai Tor chorava baixinho como um animal ferido. Por isso, mas também porque tinha consciência das implicações familiares do pai estar ali com ele. 

 Os analgésicos e sobretudo os opiáceos fizeram bem o seu trabalho. Quando fomos ver, Lalai estava a dormir profundamente fazendo-lhe o pai companhia. Este tinha desenrolado o colchão de viagem ao lado da cama, cobrindo-se com um andrajo sujo da cabeça aos pés de forma que a luz não o incomodasse. Ao acordar, virou-se para Meca e fez o ritual da reza em cima do mesmo colchão, talvez implorando a Alá que curasse o seu filho e que o destino não trouxesse mais doenças para a família. Era certo que Lalai ficaria com sequelas que o iriam acompanhar para o resto da vida. 

 Lalai esteve quase um mês internado depois de várias cirurgias complexas, mas que acabaram por lhe salvar a vida. Aprendeu algumas palavras em português que o bom soldado Moreira lhe ensinou, e pai e filho esboçavam todos os dias um sorriso de profundo agradecimento à medida que as feridas saravam. Sempre que se lhe mudava um penso, ou oferecia um chocolate, levava a mão ao peito e agradecia com uma alegria imensa: Shukraan! 

 Mais do que rancor, imagino o que não sentiria uma criança ao ser privada de parte da sua infância de maneira tão brutal. Como seria se nos dissessem que agora só podes andar de cadeira de rodas, que fazes xixi por um tubinho, e que o intestino se termina na barriga. Turbar-nos-ia com certeza a alma..Mas esta criança sorria agradecida, dando uma lição de compaixão, superação e superioridade moral, ensinando-nos que o lado negro só é escuro porque nunca nos ensinaram a acender a vela. 

 No dia em que foi transferido para o hospital pediátrico de Cabul, despedi-me com a certeza que o resiliente Lalai levava o nosso carinho, a nossa dedicação, o brilho da vitória e a graça de Alá. Teria de ser muito forte para continuar a vida sem ódio, sem raiva e sem medo. 

Lalai levou-nos no coração, e nós guardamos para sempre este menino no coração. 

Assim se vai fazendo o mundo

sábado, 5 de dezembro de 2020

The violent road

 


A nossa equipa tinha chegado há três dias e mal tínhamos tido tempo de desfazer as malas, os chouriços e os vinhos que aconchegariam os nossos apetites. Uma viagem esquisita, um país estranho, uma incerteza de como seria a guerra. Fomos acolhidos pelo Comandante Machado, um homem alto, bem constituído, completamente careca e com uma voz grave e calma, que geria toda a nossa logística e articulação com o hospital francês onde iríamos integrar as diversas equipas e áreas de intervenção.

Naquela tarde, abordou-me no corredor num tom circunspecto e disse calmamente:

-Doc, amanhã temos de ir a Camp Warehouse receber o Ministro da Defesa Português que está de visita aos contingentes nacionais destacados no Afeganistão. O briefingpré-deslocamento será dentro de uma hora.

O modo grave e pausado da voz, inculcava uma tónica dramática na afirmação, isto porque dois dias antes, tinha havido um ataque suicida a um convoy francês naquela mesma estrada, tendo atingido o médico e enfermeiro que ingloriamente morreram. Como quase tudo na guerra, onde muita coisa morre, e se não morre, renasce e transforma-se.

Uma hora em ponto depois, estávamos os dois com o pelotão de Comandos que iria fazer a deslocação. Todos em meio círculo, de frente para um quadro, onde o Tenente Coronel Batuta explicava as posições de cada um:

-Pereira vais no veículo 3, posição 2. Carvalho vais no veículo 3, posição 4. Doc vais no veículo 4, posição 4.

Discretamente debrucei-me sobre o Major e perguntei-lhe:

-Onde é que eu vou afinal senhor Major?

-Vai no 4º veículo da coluna, e sentado atrás do lugar do morto!

-Ah, bom! Senti um arrepio na espinha, mas mantive-me firme!

No dia seguinte, chegámos ao ponto de encontro com o contingente do Exército, já com o colete anti-bala e capacete colocados, e eu acompanhado duma velhinha pistola Walterda segunda guerra mundial que me tinham entregue à chegada a Cabul. Fiquei logo de sobreaviso, porque todos os militares que nos acompanhavam levavam um arsenal de munições enroladas no tronco, pistolas modernas em coldres sofisticados, armas pesadas com mira telescópica e o diabo a quatro. Só em filmes do Rambo!

Os Hummers militares são de uma pesada robustez e literalmente à prova de bala, levando cada um cinco elementos: o condutor e o pendura, dois atrás, e um quinto numa plataforma no meio, de pé, com o tronco e cabeça de fora da abertura no tejadilho do veículo, manobrando a metralhadora para o que desse e viesse. À sua frente tinha um ferro na vertical de um metro e meio, para o proteger dos cabos de aço que muitas vezes os insurgentes colocavam àquela altura, com o objectivo de os degolar em andamento

A partida estava para as 8h15, e rapidamente nos organizamos pelos veículos num nervoso miudinho que me acelerou a vontade de esvaziar a bexiga. Paciência, não havia tempo para isso. 

A coluna arrancou devagar até ao Main Gate, onde vários militares nos saudaram levantando as cancelas e retirando os dispositivos de segurançà nossa passagem. Percebi-os com um ar preocupado e inquieto. Seria misperception

Mal atravessámos as barreiras, os veículos aceleraram como doidos pelas ruas empoeiradas, e um novo mundo se revelou. O caos urbanístico de periferia de cidade de terceiro mundo, casas inacabadas em tijolo, esgotos que corriam ao ar livre, cavalos que puxavam carroças, talhos com carne pendurada onde o manto de moscas escondia os vestígios comestíveis. Era um mergulho na idade média! Os miúdos brincavam nas bermas como se nada fosse, mas à nossa passagem paravam faiscando ódio. Arrepiou-me um, que tenho a certeza me olhou nos olhos enquanto fazia um sinal de degolar com o polegar. Não teria mais de dez anos… Como poderíamos construir outra imagem nestas infâncias, sendo nós os intrusos?

As burkas azuis circulavam em passo rápido, sempre aos pares ou acompanhadas de um elemento masculino que presumo fosse o marido. Não se atreviam a olhar para nós pela janela de rede (deliberadamente de reduzidas dimensões) dos seus mantos, caso contrário todos saberiam para onde estavam a olhar e podiam ser fortemente censuradas. Censura validada publicamente, e que podia incluir vários tipos de abordagem muito agressiva.

A estrada em que seguíamos -Violent Road- tinha esta alcunha porque fazia parte do trajecto inicial de uma estrada que liga Cabul a Jalalabad e detinha na altura o maior número de ataques suicidas do Afeganistão. Naquele troço que percorríamos, tinha sido construído um separador central em cimento, de maneira a impedir que os veículos suicidas no sentido contrário colidissem de frente com a coluna militar. Eu estava sempre atento aos carros e motas, e confesso que quando passávamos  por um automóvel estacionado na berma, instintivamente fechava os olhos e pensava: ”É desta que rebentamos..!!

A nossa coluna avançava célere e sempre com prioridade. Nas rotundas, o primeiro veículo fechava a primeira entrada da direita enquanto os restantes a atravessavam a alta velocidade, adornavam na curva e seguiam em frente, juntando-se o veículo que fez a cobertura, em último. Os homens iam atentos a tudo e davam ordens aos veículos e pessoas que se afastassem. Nesta azáfama e bulício da cidade, muitos eram os peões e carroças que se atravessavam no meio da estrada. O soldado Fonseca, nascido em Paranhos, manobrava a peça de artilharia que sobressaía do tejadilho, gritando aos transeuntes no seu árabe mais universal e genuíno: Sai-me da frente caral@:#%!! A primeira ordem sabia eu era de alerta, a segunda um tiro de aviso, e a terceira um tiro a matar. De vez em quando ele olhava todo contente para baixo e dizia-me tranquilizador: Doc, tá tudo sob controlo! 

Numa alteração ao briefing da véspera, iríamos fazer uma paragem pelo caminho, na base militar Camp Phoenix, para fazer umas comprinhas”… A coluna abrandava porque estávamos próximo, e havia uma série de barreiras que assinalavam a segurança. Parámos, saindo dos veículos para os procedimentos de desarme e o descarregar das munições. Mete em segurança, tira carregador, vê se tem munição, aponta a um canudo saliente do chãotrac trac trac...Optei por fingir que fazia o mesmo com a minha Walter, pois não queria correr o risco de dar um tiro a ninguém sem querer, muito menos a mim próprio, o que seria um pouco humilhante

Aquela base era americana, e os gringos não brincam em serviço quando assumem uma missão. Nunca se quiseram misturar com a logística da NATO, e assumiram com a sua Operation Enduring Freedom toda a cadeia de esforço, desde o fabrico do pão até ao abastecimento dos caças. O ambiente ali era descontraído, com um MacDonaldà entrada, um Pizza-Hut mais à frente e uma Shop com toda a espécie de artigos vindos da América. Agora percebo porque tinham querido ali parar

A calmaria durou pouco e fizemo-nos de novo à estrada com aquele nervoso miudinho, a adrenalina nos píncaros, e a respiração ofegante como quem vê a luz ao fundo do túnel mas não a vê aproximar. Depois de muitos gritos, guinadas, carros atravessados e desta vez nenhum tiro de aviso, chegamos a Camp Warehouse.

Era daqui que Portugal tinha outrora exercido o Comando Regional de Cabul e o que chamava a atenção era o edifício de comando enorme, com o símbolo da república; a messe com talheres de metal e refeições de um compatriota de Salvaterra do Minho e mãe galega; um espaço de jogos, com bilhar, setas e matraquilhos da Anadia; uma igreja improvisada em madeira; e um bar com uma réplica de um eléctrico com vários motivos lisboetas. Um verdadeiro cantinho deste nosso país, onde as forças armadas não descuravam nenhum pormenor para fazer vincar a nossa hospitalidade. Neste caso em terra alheia.

A igreja era espartana, pequena mas acolhedora, com uma cruz onde Cristo figurava em homem sofredor, construído com restos de uma corda de sisal. Não estava ninguém e sentei-me comovido por estar ali. Por pensar que mesmo na guerra, a religião pode trazer-nos paz, tranquilidade e sobretudo a serenidade para criar espaço para o reencontro com nós próprios. No meio do caos e da confusão, é sempre importante ter um tempo para parar e reflectir, para meditar naquilo que verdadeiramente importa na vida.

A recepção ao ministro foi no bar, e nuns breves discursos elogiaram-se as Forças Armadas, os militares e Portugal! Em cada rodada de vinho do Porto se via a descompressão e os olhos cada vez mais brilhantes de todos, de maneira que quando o ministro abalou, já todos cantavam e brindavam como se não houvesse amanhã. O mais real é que poderia não haver amanhã ali, pelo que o melhor seria aproveitar os croquetes, as empadas, o presunto e o vinho do Porto

A jornada chegava ao fim e confesso que a viagem de regresso foi bem mais tranquila. Os mesmo gritos, a mesma rapidez, mas o etanol que nos corria nas veias dissipava esse medo e essa incerteza. Apreciei com outra calma e com outros olhos aquela Cabul destruída, aquele país sem futuro, aquelas mulheres oprimidas, aquela sujidade entranhada em tudo, aquelas crianças sem infância. Acenei a uma, que desta vez retribuiu com um sorriso complacente, como quem tem pena de nós e do nosso destino

Chegáramos à nossa base, sãos e salvos.

Missão cumprida!

Cabul, 6 de Julho 2009